segunda-feira, 31 de maio de 2010

Pipa vive mesmo é no céu...


A gente se emociona com cada coisa nesta vida... Pois então, esta semana todos lá em casa (mesmo todo mundo morando em casas diferentes, a casa continua sendo lá) ficamos muito tocados com a morte de um jovem vizinho da minha mãe. Lina Lúcia, minha mãe, há poucos meses se mudou para o Encantado, subúrbio do Rio, e lá tínhamos a companhia constante de Lambari, quase sempre no portão da casa dela, em frente à loja de pipas que ele possuía. Sua vida se resumia àquela rua e era uma vida colorida de pipeiro.

Os mistérios de Lamba só conhecemos mesmo esta semana. Várias incongruências da vida da maioria dos pobres brasileiros fizeram com que o sepultamento fosse marcado por um grande desamparo. Não é que hoje abro o email e encontro estas lindas palavras de minha mãe, contando sua dor e seu carinho por um vizinho terno que oficialmente não era ninguém.


"Quando comprei a casa do Encantado o conheci.

Sempre sorridente, aliás, o sorriso fazia parte dele. Quem é aquele rapaz gordinho e simpático?
Aos poucos fui o conhecendo e soube que se chamava Luciano, ou melhor, Lambari. Lambari porque era assim que o Encantado inteiro o chamava. Esse era o seu apelido porque desde pequeno era barrigudinho.

As crianças o amavam assim como ele as amava. Vivia cercado delas. Lambari era pipeiro. Chegava a vender vinte mil pipas no verão e para isso se preparava o ano inteiro. Era entrar na Paituna e dar de cara com Lamba fazendo rabiolas com fitas antigas de vídeo cassete. As árvores e fios do local brilham ao sol com suas tirinhas pretas e reluzentes. É bonito de se ver!

Ao me mudar para a casa em frente à lojinha de pipas, a LAMBARI PIPAS, passei a conhecê-lo melhor. Logo no primeiro dia, perguntei a ele como fazer para comprar gás e um minuto depois, após uns assobios e alguns gestos, lá estava o gás na minha porta. Carteiros, marcadores de luz e água da minha casa, era com ele que se entendiam. Era o guardião da minha casa e da rua. Só que Lamba era um guardião manso, pacato. Era um anjo guardião.

Viajei em janeiro e ao retornar, ele me disse ter tido um AVC. Ainda estava com a boca um pouco torta, mas logo voltou ao normal. A cervejinha que tomava durante os jogos do seu querido Flamengo, não tomava mais, mas não abandonou o hábito de comer carne gordurosa. É que ele sabia que sua vida estava por um fio e não quis abandonar esse prazer, talvez o único que tinha na vida. Temia pela sua vida e pedia a DEUS que quando ele partisse, eu não estivesse presente, mas não foi assim que aconteceu.

Na madrugada de sexta-feira, ele se foi, deixando órfã a rua toda. Órfã e surpresa porque logo se soube que ele não tinha nenhum documento. Ele não precisava disso, mas a sociedade cobrou ferozmente essa inocência, deixando-o insepulto por três dias, não aceitando os documentos que conseguiram seus parentes e com a ajuda de um vereador foi enterrado ontem, tristemente, num buraco elameado, como indigente.

Enquanto andava nas aléias daquele cemitério, acompanhando o pobre cortejo, soube que Lamba dormia chupando chupetinha (ele tirava o arco de plástico para que ninguém notasse), cheirando um paninho e que era, aos trinta e oito anos, virgem, sexualmente virgem. Lamba era uma criança inocente. Perdemos um anjo.

DEUS mandou buscar Seu anjo.

Seja feliz, anjinho Lambari!"

Mãe, um grande beijo! Te amo!

Para o homem lindo que se foi, dedico um dos lamentos mais profundos em língua portuguesa. Lamba, cansado dessa vida de nada tratou de ser pipa no céu... Afinal, existirmos a que será que se destina?


11 comentários:

Lina Lucia disse...

Fafá
Soube também que ele não sabia ler. Não precisava. As pessoas que lhe compravam fiado recebiam dele anotações que somente ele entendia, isto é, rabiscos. Agora, quem tiver consciência pagará, quem não ....

GIL ROSZA disse...

Às vezes nos meus momentos "avatar" penso nisso e logo depois “despenso”. Uma hora acho que existência humana bem que poderia ser uma existência apenas pela existência, como parece ser a existência de qualquer outra coisa, mas depois lembro que uma vez há muito tempo no passado já tivemos uma existência assim e mudamos, talvez porque no fundo, no fundo, apenas existir não nos basta.

:: Soul Sista :: disse...

É Gil, também acho que apenas existir não basta! É muita vida de fundo para dar conta. Mas, no meu momento Avatar, sonho com uma existência de igualdade nesta terra. Depois desonho, porque nossa realidade é deveras dura e desprotege à revelia uma pá de gente boa por aí. Foi o caso de Luciano e de tantos anônimos que só vemos como número em páginas de jornais.

Forte abraço

Helton Fesan disse...

"homem, esse ser que inventa a cultura por não suportar a morte"

Estes anjos que nos lembram do pó de nossa vida. e nós,inconformados lhe arrancamos as asas pensando lhes fazer mal.
Apenas os libertamos...

:: Soul Sista :: disse...

É, Helton! Isso mesmo, Lamba desprendeu suas asas, liberando-se daqui e fazendo-nos lembrar do simples esquecido - a matéria de que somos feitos.

Deixemo-lo ir...

Wilson disse...

Fabiana, num dia tão emblemático como hoje (2ª feira... início... recomeço...) só tenho a te agradecer por continuar dividindo tanta VIDA conosco... e penso (tentando não despensar... rs) até que ponto a vida não é, realmente, feita para amadores... será mesmo?

Mil bjs,
Wilson

:: Soul Sista :: disse...

Oi Wilson queridoooo, eu que agradeço a sua presença sempre por aqui. Sobre se a vida é para amadores... sei não! A essa altura da minha vida, nem sei mais quem é o amador ou o profissional da parada. Quem sabe? rsrsrsrs

Um grande beijo com muitas saudades!

Eloya disse...

Flooor!
Eu amei teu blog!
A tempos eu procurava um blog do tipo:
do tipo que tem uma mulher negra 'no comando', assuntos 'blacks' e tudo mais.
Adorei meesmo. Estava fuçando num blog de uma amiga de um amigo e vi o link pro teu blog, e logo que vi me encantei.
Parabéns!



Ásè


Eloya


http://coisapreta.tumblr.com/

:: Soul Sista :: disse...

Cara Eloya, é um prazer te receber aqui. Que maravilha que gostou.
De fato, a idéia aqui é essa mesma: escrever sobre coisas que me tocam. Como mulher negra, assuntos relacionados a racismo e culturas afro muito me interessam.

Volte sempre e comente quando quiser.

Um forte abraço, Asè!

Camilla Dias Domingues disse...

foi para o Orun e será bem recebido!

Anônimo disse...

ai, que lindo ele, Fabi. E que lindas vc e Dona Lina por perceber a delicadeza de uma pessoa... lamentei não conhecê-lo, mas sabemos que existem muitos "Lambaris" por todo lugar nesse país tão desigual. Um bjo carinhoso