segunda-feira, 20 de abril de 2009

sábado, 11 de abril de 2009

MINHAS DUAS ANCESTRAIS VIVAS (declaração de amor)

Este texto é antes de qualquer coisa uma declaração de amor. Leli, meu avô, já antigo conhecido dos que me lêem desde o início (setembro de 2008), me deu muito mais presentes do que os apresentados no texto inaugural dessa coisa aqui. Dois dos mais preciosos são duas irmãs dele, minhas tias-avós Zelina e Bubu.

Antes de ontem, sexta-feira santa, dia do almoço sagrado na casa delas desde 2007, voltei da Liberdade me prometendo escrever aqui um texto para homenageá-las. Como acabou não dando pra fazer no dia, a idéia tinha amansado em mim, mas hoje, folheando um esporádico diário que escrevo, achei um texto escrito na primeira semana-santa soteropolitana da minha vida.

Em 13/04/2007, refleti, sob os auspícios de Baco (porque depois de intensa vivência com o mundo delas, só um vinho pra me ajudar a desvelar aquilo tudo dentro de mim), sobre o que representava a vitalidade daquelas arqui-mulheres na minha vida. A vida delas, sem dúvida perto do fim, proporciona que eu ligue as pontas todas dos tempos que me constituem: desde antes de eu nascer até depois de eu desaparecer.

Tais quais os mitológicos personagens de Guimarães Rosa, minhas lindas tias vivinhas da silva guardam uma alegria de viver, uma lucidez e uma fé, no mais profundo sentido que essa palavra possa ter, que é de cansar qualquer jovem que se sente ao lado delas para escutar suas saborosas histórias, exaustivamente repetidas, né? Normal... Mas sempre, no meio da repetição de histórias d´antes, vem um personagem novo que eu não conhecia ou uma faceta nova de personagens já conhecidos.

Nessa sexta mesmo, descobri que meu avô já trabalhou voando. Bem novinho, era radiotelegrafista de bordo e orientava o piloto bem ao lado dele, ali da cabine. Isso ele nunca tinha me contado. Lelinho me contava heróicas histórias do trabalho dele em terra, explicando como orientava, a partir dos tipos de ventos e de outros fenômenos metereológicos, os pilotos a saírem de enrascadas que poderiam levar a sérios acidentes. Ele de fato entendia os mistérios dos aviões e sua voz traduzia um verdadeiro amor pela aviação. Pois foi a pedido de sua mãe, Dedé, que meu avôzinho parou de voar, ainda bem jovem. Nossa... uma mente que ama imaginar o não acontecido como a minha, já me levou a pensar quão mais audacioso seria meu avô se tivesse continuado a furar céus, voando nessas enormes aeronaves por aí.

Sem as inspiradas versões de minhas tias, jamais tomaria conhecimento disso e de outras histórias da minha família. Elas são o contraponto do meu avô, porque, se ele dourava a pílula e mostrava um mundo só de encantamento, elas me contam as mesmas passagens por outras perspectivas e vão logo dizendo. "Seu avô, ah, pra ele tudo era bonito e perfeito, Fafá, mas papai não era mole não... mulherengo que só ele". "Dedé, nossa mãe, era ótima! Mas não queria que suas filhas se casassem. Não é porque ela tinha sido infeliz no casamento que nós seríamos, né? Não entra nessa não, viu, Fafá, se case!" Por esse senso de realidade, minha visão delas mudou radicalmente. Antes de vir para Salvador e ficar mais próxima do mundo ultra-contemporâneo delas, minhas tias se resumiam a ser as carolas da família. Aquelas mulheres que se refugiaram na fé católica por medo da vida, dos encantos sensuais ou eróticos que nos fazem queimar, para o bem e para o mal.

Ledo engano meu! A fé dá não só sentido, como lucidez e erotismo a suas vidas. Quando falam em homens do passado ou do presente mesmo, os olhos delas vibram e eu vibro por dentro, por ver que estão vivas e que sentem prazer, um amor pela vida que as levam a não querer ir embora deste mundo. Ah, esqueci de dizer, Tia Bubu tem 94 anos (é a mais velha de todos os filhos de Dédé e Phillipe) e Tia Zelina completará 91 agora no proximo 27, apenas 3 dias após o meu aniversário (só para avisar aos leitores daqui, ta?). Vale contar, em separado, fragmentos da história de cada uma, porque é da riqueza da trajetória de minhas velhas tias pretas que eu bebo água benta e purifico meu corpo...



Tia Zelina foi a mulher desbravadora da família. Uma perspicaz aluna que fez parte do grupo das dez melhores notas de uma importante escola normal de Salvador. Os estudos dela foram custeados pelo meu avô, que na época, já trabalhava, e alugou uma casa na capital, pois seria pouco prática a vinda diária da Ilha (de Itaparica) pra cá. Tia Zelina foi professora num tempo em que era necessário ir a lugares pouco habitados do norte e nordeste do país. Embrenhou-se por terras indígenas da Amazônia. Num desses lugares, ela conta, decidiu voltar para Itaparica 6 meses depois, pois sofria com saudades da sua terra e família. Alunos-garimpeiros ofereceram fortuna em ouro e diamante, para que ela não fosse embora. Sempre que acaba de contar essa história, ela diz: "Nós poderíamos ser milionárias hoje, Fafá! Mas eu não aceitei." No meio de suas histórias de viagem, ela demonstra certo arrependimento por não ter tido coragem de continuar viajando, descobrindo mundos diferentes dos seus. Suas histórias são uma maneira de se rever, já no fim da vida, refletindo sobre o que sabe que não poderá mais fazer.

Tia Zelina gosta tanto da vida que o que mais a angustia, mesmo com toda fé que tem no Santíssimo, é a proximidade da morte. Isso ultimamente a tem deixado sem sono, mas perder a lucidez, ela não perde não. Agora, essa tristeza toda vai embora, quando a casa se enche de gente e a festa começa: são vizinhos entrando e saindo, padre que reza para Nossa Senhora lá, benze a casa e depois todos da comitiva religiosa se fartam com delicioso café da manhã, é gente passando para vender peixe, beiju, ex-alunas que ligam.

Aniversário naquela casa tem que ser comemorado com bolo bonito, todo confeitado e em forma de coração. Nos seus 90 anos, a casa se encheu de ex-alunas-afilhadas do Baiacu (uma região da Ilha de Itaparica). Hoje as antigas menininhas são avós ou bisavós que ainda guardam profundo amor e respeito por aquela mulher preta e distinta que lhes ensinou as primeiras letras. A foto a seguir, mostrandoTia Zelina rodeada por suas eternas alunas, me leva a entender que minha função hoje, como professora, faz parte de uma linhagem de resistência que se estende, pelo menos, desde a década de 30 do século XX.



Tia Bubu é outra coisa, complementa o lado ansioso de Tia Zelina, mas ela é melhor que todo mundo. Pra mim, ela representa tudo o que eu jamais poderia ser: desde o desprendimento para cuidar dos outros, a bondade extrema até a virgindade. É isso mesmo, gente! Minha tia sairá deste mundo talvez sem ter sequer se aproximado da boca de um homem (nem falo de mulher, porque isso ela jamais consideraria). Mas, entendam, o moralismo passa longe dessa mulher criada para ficar em casa, para ser aquela que cuida dos outros porque é assim que tem que ser. Na última sexta-feira, emocionada fiquei, quando soube que foi ela quem cuidou do meu bisavô Phillipe quando ele já se encontrava nas últimas. Na hora de dar banho, ele ficava muito incomodado e dizia: "Quem tinha que fazer isso era meu filho homem". Ela rapidamente respondia: "Mas ele não está aqui. Mora longe. E de mais a mais eu sou sua filha. Deixa de besteira!!!!"

Seu nome, Áurea, eu não sei por quem foi dado, mas com certeza foi alguém com ares de feiticeiro para saber que a personalidade dessa mulher seria de ouro mesmo. Ao contrário de sua irmã docemente ranzinza, Buba gosta de tudo que dá prazer (doces, comida boa e, pasmem, piadinhas de sacanagem, depois das quais vemos ecoar sua forte gargalhada pela casa a fora). Mandou uma sacanagenzinha, ela capta na hora, mesmo com ouvidos que não ajudam mais tanto assim. Quem chegar com bala, ela vai logo aceitando, às vezes escondida da irmã, sempre preocupada com o nível de açúcar no sangue, com a alteração de pressão. Tia Bubu quer mais é viver sem reclamar e aproveitar feliz o tempo que resta por aqui. Por isso, quando Tia Zelina começa suas reclamações sem fim, ela vai logo cortando: "Vamos parar com isso, minha gente! Podemos viver sem reclamar. O sofrimento fica pra trás." Tia Zelina geralmente obedece, mesmo que a contragosto.

A minha alta gargalhada é de Buba com certeza. O meu "gente", arremedado por tantos amigos, é dela com certeza, essas memórias atávicas que se cravam na gente, sabe? Mesmo tendo crescido longe delas, nossa linguagem tem muito em comum. Ah, já ia me esquecendo, mas meu nariz também é de Buba, assim como o de minha mãe, do meu irmão Felipe (esse com outra grafia), de Morena e de João. Todos nós ligados assim... desde a mulher de ouro! Pra mim, é um conforto saber que eu me estendo para antes do meu corpo se constituir como tal em duas vívidas mulheres negras.



Para terminar, parafraseio toscamente - como é bom poder ser tosca aqui, meu deus!- Clarice Lispector e Elisa Lucinda, usando a 2a. pessoa do plural, em sinal de respeito por aquelas que vieram muito antes de mim e continuam por aqui, me dando o privilégio de conhecer grande parte da matéria de que sou feita.

Tia Zelina e Tia Bubu, eu vos amo! Diariamente morro por vosso perfume, aquela lavanda de depois do banho das 18:00, aquele talco perfumado à velhice boa, das mulheres tomadas banho de todas as nossas famílias pretas por aí...



Série SOULSISTA

domingo, 5 de abril de 2009

NÃO CHOREM POR JÔNATAS CONCEIÇÃO

(1952-2009)

Em homenagem ao poeta, professor, radialista e ativista, dois poemas de sua lavra e o emocionado e lúcido texto de Simone de Jesus Santos (Mestranda do Programa de Estudos Étnicos e Africanos - UFBA), cujo título peguei emprestado para nomear esta postagem-memorial, dedicada à infinitude de todo lutador de palavras.

A PEQUENA CEIA
(fragmento final)

Dona Magnólia de Araújo,
sinto-me solidário com o teu ofício de badameira.
A tua arte e sabedoria
de sobreviver à custa do lixo
dão-me força para continuar,
solitário, à cata de palavras que
quisera fartas, purificadoras e anunciadoras
dum porvir de
mel
luzes
boas merluzas e dignidades para todos.

- Uma farta e perene Ceia, Dona Magnólia!

(Cadernos Negros, 29)

JOÃO SALDANHA

A sanha dos opressores de plantão
não pôde calar o teu verbo.
Foste sempre o dono da bola
desde que saíste de Pelotas
para encher de fantasia
tanto o torcedor da geral como o intelectual.

Este poema que queria redondo
vai aqui com versos quebrados
branco querido, que soube como ninguém
traduzir a arte dos pés negros
e elevá-la ao Olimpo dos mais humildes.

Caro poeta da oralidade
pelas ondas do rádio, o esporte bretão
invadiu a área do nosso coração
com o vigor e a sabedoria de sua arte de comentar
homens e bola em apenas quatro linhas.

(Cadernos Negros, 29)

Não chorem por Oliveira. Os escritores não morrem... assim disse o velho militante Jônatas Conceição em homenagem ao poeta Oliveira Silveira, na edição nº 24 do jornal Irohin.


A mensagem deixada por Jônatas não cessa a tristeza diante de nossa irreparável perda, entretanto, contribui para as lutas de todos os afrobrasileiros. Sua caminhada de militante, poeta, professor e diretor do bloco Ilê Aiyê não termina no dia 02/04/2009 porque a sua escrita há de ser perene. Para além dos Quilombos Contemporâneos dos quais participou, pode ser pensada a sua vivência de afrobrasileiro.


Quem o conheceu sabe que fez de suas marcas caminhos um Quilombo de palavras: afrodescendência, Literatura Negra, Movimento Negro, são alguns vocábulos constantes no seu discurso. No mesmo perfil de força, calma e doçura integram o jeito tranqüilo daquele a quem disse ser “poeta da memória”.


Para Jônatas, a sua geração de 1970 é significativa no processo de construção de uma sociedade mais democrática para os afro-brasileiros.O seu empenho é um importante legado em nossos dias. Seu trabalho vivo fortalece as identidades afrobrasileiras e coincide com o propósito de Zumbi[...] Senhor dos caminhos: liberdade, liberdade, liberdade. Com essa imagem que Jônatas nos transmitiu, no último 02/04, tornou-se eterno porque os escritores não morrem.





sábado, 4 de abril de 2009

AINDA CORPO... E BESTEIRAS

Como quero escrever, mas esvaziar todo o pensamento que sobrou da minha mente. Pensar pra quê, né, gente? Ainda vale se extasiar de beleza com a dança. Segue-se à elétrica coerografia do espetáculo "O corpo", cujo fragmento encontra-se na postagem anterior, a brejeirice de "Nazareth" (eu tocava feliz "Brejeiro" de Ernesto Nazareth, o compositor que inspira esta coreografia), só para lembrarmos que, para além da dor, há muito , muito mais que o Cabo do Bojador. Há corpos lúdicos a nos mostrar eros em plenitude de potência! êêêêêiiiaaaaaa - e viva o non-sense das palavras, que também serve pra muita coisa! EXU fecha, mas também abre caminhos!!!!! Vou parar por aqui, porque vocês, cara(o)s leitora(e)s, não merecem me escutar mais não!!!!!!



quinta-feira, 2 de abril de 2009

BENDITO OS CORPOS QUE SE MOVIMENTAM

Dançando muito
Dançando solto
Dançando bem diferente
Dançando curto
Dançando torto
Jogando o corpo pra frente
Dançando estranho
Dançando lindo
Dançando muito contente
Dançando funk
Dançando samba
Dançando diversamente

(Dançando - de Péricles Cavalcanti cantada loucamente por Adriana Calcanhoto)


Graças a Kátia (blog webneguinha), meu dia está terminando leve, depois de um início... nem tão leve assim. Há tempos atrás ela colocou em seu blog um vídeo do Grupo Corpo e falou da alegria gorda de assistir ao DVD de 30 anos da companhia (na verdade, lembro muito não, ela pode ter feito referência a outro DVD do grupo). Desde então, comecei a tentar fazer download de alguns espetáculos a que assisti extasiada há anos atrás.

Depois de alguns dias, devido à conhecida lerdeza da minha conexão com a internet, consegui ter dentro do meu computador os 44 minutos da coreografia "O corpo", com música de Arnaldo Antunes. Todavia, só hoje, depois de um dia exaustivo, com o corpo doído, resolvi, para relaxar, assistir àqueles leves corpos que brincam de tornar movimentos dificílimos em saudáveis brincadeiras.

Vendo o lúdico espetáculo, me lembrei que a dança me paralisa. Embora ame mexer meu corpo, falo aqui de assistir a outros corpos em ritmo regular fazendo movimentos. Ver uma bela dança me deixa meio que hipnotizada e eu não consigo deixar de olhar. Às vezes isso chega a ser constrangedor, porque se estou em uma festa, num show ou em qualquer lugar onde as pessoas dancem e vejo alguém mexendo o corpo com certa graça, fico olhando e, mesmo quando não quero mais ou quando racionalmente sei que a minha observação está quase invasiva... continuo a olhar!

Outro dia mesmo, estava com uma amiga no "Balcão cheio de assunto" aqui em Salvador (esse lugar é papo pra outro texto), quando pedi a ela que observasse bem os três caras a nossa frente, porque eles iam dançar muuuuuito. A primeira vez que os vi, dançando em trio, fiquei no estado palerma que antes descrevi. Lindamente, eles acompanhavam as músicas e, em meio a certa malandragem, exibiam seus belos corpos saradíssimos. O do meio, com uma enorme juba crespa solta, parecia ser o líder do trio, comandando os outros dois. Sem dúvida, ele era o que balançava melhor o corpo, movimentando-se com extrema facilidade. Liiiindoooo!!!

Só que no dia em que os mostrei à minha amiga, eles não estavam a fim de dançar. Uma hora ensaiaram começar, mas logo pararam, para meu descontentamento. Saí de lá decepcionada por não ter podido cansar de olhar estática para o trio de dançarinos.

Na década de 90, quando me tornei platéia assídua do grupo Corpo, o que mais impressionava a mim e a meu companheiro de espetáculos de dança, meu querido amigo Wilson, era o fato de a gente ter a sensação de poder fazer aqueles movimentos. Apesar de sofisticadíssimos, a maneira de os dançarinos mexerem o corpo era-nos familiar. Além disso, havia uma espécie de sincronia dissincronizada, ou seja, embora todos os corpos dançantes formassem uma companhia de dança, dava pra gente observar determinadas singularidades físicas e de movimentação de cada bailarino. A perfeição ali não estava tanto na uniformidade precisa dos movimentos, como nos espetáculos de ballet clássico, mas no destaque, dentro do grupão, da beleza de cada corpo em separado.

Nazareth, O corpo, Benguelê, Santagustin, 21, entre tantos outros espetáculos! Quantas vezes saímos do Theatro Municipal do RJ tentando imitar os movimentos vistos no palco, mesmo sabendo que não chegávamos nem perto da acrobática cambalhota ou do fantástico pade-deux?

Então, cara leitora ou leitor, tente você também, é mesmo possível que se aproxime do dinâmico jogo que eles brincam corporalmente. Convido-a(o) a pelo menos tentar... Nem que seja o fácil movimento de robô ou a cambalhota pra trááááááááááááááááááás e... pra freeeeeeeeeeeeeeeeente! Enjoy it!