quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

ESCRITOS, BLOGS E REDES

Alegria extrema, grande contentamento, regozijo. Essas são algumas definições para júbilo: o sentimento de mundo que me toma agora quando penso na escrita, nos textos, na minha voz, nas imagens por mim feitas, nas visões muito particulares de mundo que desde 14 de outubro de 2008 tenho compartilhado com amigos próximos e distantes, recentes e de longa data.

Medrosa como sou, temia expor demais minha alma em contradição aqui neste espaço. Na verdade, nem imaginava que o fato de ter um blog me levaria a escrever baboseiras com tanto prazer. E que esta escrita viria livre, sem amarras de qualquer ordem, só respeitando mesmo o íntimo ritmo do que me toma por dentro. Uma transformação começou a se dar sem que eu nem sentisse desde que comecei a usar mais esse meio de comunicação aqui.

De repente me vi pensando em textos próprios para blog. Sentia, observava alguma coisa que profundamente tinha me tocado e pensava na hora, "tenho que escrever isso lá em SOULSISTA". Acontecimentos, fatos vividos ou conhecidos aqui, só aqueles que me subjugam, impondo-se a mim. Non-sense. Escrever sobre ninharias de nada, isso muito me interessa, porque, quase sempre, o pequeno, o ordinário, o de sempre guarda uma profundidade que nosso olhar superficial nos impede, por algum motivo, de ver. Engraçado! Essas reflexões estão vindo aqui agora, sem muito pensamento prévio, elas vêm quando tento buscar o que tem me movido a fazer postagens, quase que semanais, aqui!

Em três meses e pouquinhos dias, passaram por aqui a linda memória de meu avô, textos melosamente sentimentais, reflexões sobre os nadas de sempre, alegrias, sonhos, mundos inventados, tristeza, blues, morte em vida e vida em morte. Enfim, tantos diferentes assuntos, mas que podem ser lidos todos como um grande texto só. Às vezes acho que essa tendência para repetição que tenho desde pequenininha (quando criança escutava mil vezes o disco da história da "Formiguinha e a neve" e sempre chorava no mesmo ponto do enredo, quase no final; hoje, infernizo a vida de familiares e vizinhos escutando até cansar a mesma música, sentindo em todas as execuções, quase sempre, o mesmo prazer - IMPRESSIONANTE!!!!) acabou se estendendo para cá, porque, quando releio as postagens, tenho a impressão de, por perspectivas diferentes, estar sempre falando a mesma coisa.

Se a escrita, a minha voz aqui tem um sido um bálsamo medicinal para a alma, espero em 2009 conhecer muito mais pessoas através deste democrático espaço e estreitar cada vez mais os laços com velhos conhecidos do mundo virtual ou real mesmo. Desejo, nesta celebração que aqui comungo com vocês em forma de palavras, um 2009 de muita utopia. Que possamos olhar as estrelas, namorar a lua e ver sempre no infinito céu noturno inúmeras possibilidades de vida, pontos de luz e caminhos. Sigamos agora o ritmo de Oxóssi, guerreiro das matas, esse deus afro-hippie que, de alguma forma, habita todos nós. O ano é dele! PAZ, AMOR E MUITO BOA MÚSICA A TODOS!!!!

Aliás, como achei que faltou música aqui, não poderia fechar o ano, sem colocar pelo menos um sonzinho que gosto. Essa londrina selvagem tem incendiado minha alma ultimamente (os coitados dos meus vizinhos bem sabem). Mas em "Tears dry on their own", uma interessante letra que fala sobre a dor de ser deixada ou rejeitada por um homem, fazendo com que avassaladoras lágrimas sequem por elas mesmas, toma corpo com uma melodia que, em parte, é a incorporação de uma batida de "Ain't no mountain high enough", cantada em fins de 60 por Marvin Gaye e Tammi Terrell, e, em outra parte, é uma genial recriação do clima Motown. Com o enérgico e lindo som de Amy, nos despedimos de 2008 e inauguramos novos tempos no ciclo que há de vir...





Poster "Jubilo" de Keith Mallet

domingo, 21 de dezembro de 2008

ELA SE DEIXOU IR... ME DEIXEM CHORAR

Hoje eu não consigo pensar, refletir, entabular idéias. Todo o meu corpo dói... Por favor, me deixem chorar! Mais um corpo de negra afro-africana se autodestrói e eu, em extensão, fragmento-me em mil megatons...

Há pessoas que só com uma obra já fundam mundos tão intensos que não precisam fazer mais nada em suas trajetórias por aqui. Converso com amigos e eles falam a mesma coisa: há músicos, cantores, intépretes, atores, intelectuais que só com uma obra, uma produção, um pensamento, uma interpretação já prestaram um grande serviço à humanidade. Daí podem descansar... Mas o mais louco é que justamente essas pessoas não descansam. Vivem vigorasamente até o fim. Até mesmo quando escolhem o dia e hora do fim de seus corpos, vivem em vigor!

Pois então, Neusa Santos Souza, ao produzir o importantíssimo estudo de caso "TORNAR-SE NEGRO ou as vicissitudes da identidade do negro em ascensão social" transformou-se em um desses seres. Um estudo quase todo descritivo de trajetórias de afro-brasileiros em angústia. Seres humanos em conflito, cujas "nóias" aparecem explicitamente como sintomas de uma doença maior - o racismo. Nossos corpos e pensamentos como sintoma, sintoma de uma história que, aqui, tem teimado em ficar invisível.

Dentro desse processo, a leitora se depara e se identifica com os paradoxais mundos afetivos ali expostos, em doentia dúvida quanto aos valores ou papéis de seus corpos. Por isso, a pesquisa acabou por demonstrar quanto o processo de tornar-se negro é doloroso e, muitas vezes, impossível de ser feito por muitas e muitos afro-descendentes, nesta terra dos tropicalismos, dos mulatismos e das democracias raciais em voga. Tudo isso foi produzido por ela, num momento de quase total fechamento do mundo acadêmico brasileiro para o afro-brasileiro tomar-se a si próprio como objeto de pesquisa (o pleonasmo aqui é ênfase trágica mesmo, apontando a voz de um grupo ainda hoje impedido, em muitos departamentos acadêmicos brasileiros, de desenvolver projetos que abordem questões que o afetem mais de perto).

Não consigo passar daí em termos da tentativa de compreender por que mais um corpo negro escolhe despregar-se de si. Hoje não é definitivamente dia pra isso! Agora, só o estarrecimento, as lágrimas, o espanto e a dor ao tomar conhecimento de que Neusa escolheu ir, espatifando-se em um asfalto ou calçada qualquer. Meu corpo, aqui protegido diante desta tela de computador, dói inteirinho, meus ossos triturados. Despedaçada em mil e um pedacinhos de sangue!

Para Neusa, hoje, dia de seu sepultamento, depois do precoce fim por ela mesma escolhido, desejo um punhado de belas flores. Dedico-lhe um ramo de enormes girassóis amarelíssimos, pela coragem de uma vida inteira, até o momento final da explosão de si!

Poster Girasoles de Keith Mallet

Until the philosophy which hold one race
Superior and another inferior
is finally and permanently discredited and abandoned
Everywhere is war, me say war.
Bob Marley


Da série BLUES

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

E EU QUERIA FALAR COM A LUA

Hoje, no fim da tarde, bem daqui de casa mesmo, eu namorei a lua. Ela, bola cheia de luz e sombra, olhando pra mim e eu deslumbrada com aquela beleza de se seguir.

Fiquei meditando... por que exerce tanto poder sobre os humanos e sobre o que naturalmente nos constitui? Seu amor é de doação, é de seguimento, é amor pra sempre, já que nunca se livra do próprio destino de ligar-se a Terra, nossa casa. A Terra, eu sei, também se aproveita bem, seja nos caminhos das águas, suas cheias e vazantes, ou no olhar hipnótico em direção à beleza absoluta da lua. A Terra não pára de olhar pra Lua. Amantes... Inebriadas de si, não se largam nunca.


Aproveitei o namoro e, óbvio, fiz dois pedidos: o primeiro é pra que se expanda, de
fato, a alegria na Terra; o segundo eu não conto, é secreto. Só digo que foi um pedido de amor, de calor, de silêncio e mar, de estranha dor.

Hoje bem ao anoitecer, naquele horário em que sinto um aperto tênue no coração, misto de melancolia e transbordamento de amor, eu namorei a lua. Ela, tava toda toda... E disse sim. Dindinha nossa, garantiu certeza na realização de um dos dois desejos...


"E eu queria falar da lua
Mas não sou silenciosa e plena de luz
Como só ela sabe ser"
Beatriz Nascimento

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

IMPERDÍVEL ESSA TEMPORADA DO BANDO NO RIO, PRINCIPALMENTE O SENSÍVEL E INTELIGENTE ESPETÁCULO ÁFRICAS PARA OS QUE TÊM CRIANÇAS. NÃO DEIXEM DE IR!!! SOULSISTA

sábado, 22 de novembro de 2008

Quando venho Rio


Antes, morando aqui durante toda a minha vida, tinha muita vontade de sumir. Encanada com a cidade onde nasci, desejava desde cedo novos mundos. Sair daqui, conhecer o estranho, me deter nos estranhos de mim. Por isso, os estrangeiros são meu forte. Muitas vezes, inclusive, foram eles, em trânsito, meu porto seguro. Que engraçado!

Já andei e desandei pela minha cidade. Já desamei e amei minha cidade (exatamente nessa ordem) enquanto aqui morava. Tenho amado e desamado estrangeiros pela minha vida à fora. Aliás, busco a fonte disso e não encontro nunca, porque talvez não seja para encontrar mesmo. Só lembro que passei a refletir mais sobre esse tipo de olhar, quando li O estrangeiro de Camus, aos 16 anos, incentivada pelo meu professor de filosofia da época. Foi a primeira sensação intensa ao ler um romance, pois tive que lidar com ética em profundidade. Abismada e sentindo-me estrangeira de mim, solidarizei-me com o assassino-protagonista. Como eu, tão justa, poderia compreender e defender intimamente um homem que tira a vida de outro ser humano? Hoje a questão parece pueril, mas, na época, foi uma comoção erótica ler o absurdo existencialista do argelino. Meu corpo adoeceu e eu só consegui sarar, quando cheguei ao final da história. Foi a minha primeira experiência radical com o que está fora (extra), em tensão e profunda identificação com o que está em mim, no meu interior. Talvez, naquele momento tenha me identificado com uma maneira de olhar o mundo como se nele não estivesse: estrangeira. Essa é a condição que me coloco quase sempre em tudo. Tá vendo! Mesmo fingindo que não estou procurando raízes para meus sentimentos, acabo criando respostas. Mas, de fato, línguas, corpos e hábitos culturais estranhos me atraem muito! Talvez por isso também, voltar para o Rio a partir de uma nova condição, estrangeira, tem me agradado muito nos últimos tempos.

Estar em outra cidade há um ano e oito meses me faz olhar para minha de maneira diferente. Não exatamente há em mim um desejo de voltar agora. Não sei se já é hora de voltar pra casa! Não sei mesmo... Só sei que vir aqui com o olhar de fora é outro encantamento... Outra levada mesmo, olhar para uma cidade tão simultaneamente familiar e estranha. Passar, em trânsito, pelo Rio me faz ver o novo onde, antes, só via o normal, o de sempre.

Eu saí do meu lugar e a cidade saiu do seu constumeiro lugar em mim também. Nossa! Quanta filosofia barata de deslocamento! O fato é que, tal qual uma criança, vejo tudo como se fosse uma grande novidade. Como Tim Maia Racional, quanto venho ao Rio fico numa relax, numa tranqüila, numa boa! A sensação é a de que estou mais livre mesmo, para rever os vãos e desvãos da minha cidade.

Óbvio que muita coisa me entristece, ainda até mais do que quando aqui vivia, como a paisagem mudada da Glória, bairro onde morei nos últimos cinco anos de RJ. Mudada pra pior, com crianças esquálidas correndo e lutando todas juntas e misturadas por mais uma pedrinha de crack, outra vagando só, em movimentos rapidíssimos, como se tivesse acabado de fumar mais uma pedra. Doloroso, sombrio, mais do que triste ver na esquina da minha antiga rua meninas e meninos brincando, elétricos, todos sob o efeito de um vício-mãe, vício-pai, vício-irmão, vício-avô, vício-tia...

Mas, por outro lado, toda roda de samba já conhecida, mesmo com as pessoas de sempre, é nova pra mim. Às vezes, vejo amigos meio que entediados olhando pra mim espantados, sem entender a razão de tamanha alegria. Outro dia, um amigo me olhou palerma, até porque nem sabia que eu estava na cidade, a rodopiar no salão (será que dá pra chamar a parte coberta do Beco do Rato de salão?) com um ilustre desconhecido. Corpos suados e apertados, tomava banho de cerveja feliz, observando o amigo de longa data que me acompanhava e tocava, à moda dele, um pandeiro atravessado, em meio aos músicos de verdade! Ai, ai! Se fosse antes, gritaria: "A. saia já daí! Você ta atrapalhando tudo!!!!" Mas aquele dia não. Nem tava aí! Nem tava ali! Estrangeira, via estranhamente de fora toda aquela confusão a minha volta. E mais... Gostava verdadeiramente daquele caos!

Nossa, como é bom chegar no RJ e reencontrar o meu sotaque! Se quero mesmo experimentar minha antiga dicção novamente, entro num táxi e desato a puxar papo com o taxista. Daí vem, caudaloso, o ritmo da linguagem da minha terra. Como falam os taxistas? Sempre com mil histórias pra contar e mil e um caminhos pra fugir de engarrafamentos que empatam suas vidas de correria. Falar novo e antigo, jeito de corpo meu e nunca visto. Eu rio no Rio, me amarro! Praia, Posto 9, é mistério da raça! "Lá no sul eu freqüento Ipanema, sistema, cachaça pra se beber". Melodia disse tudo! Muitas emoções boas ali passadas voltam assim que piso naquela areia quente ou quando entro naquela água geladíssima... Ali não sou estrangeira nada! To em casa, meu quintal mesmo!

Agora, pérola da mais negra é quando me deparo com o novo para mim, estrangeira, e para amigos já cansados dos mesmos da cidade. A expressão de encanto e novidade é coletiva. Tive umas três vezes essa sorte! A última foi maravilhosa! Pela primeira vez, um grupo de homens pretos tocaram no último sábado, em pleno Beco do Rato, um soul do bom. Músicos maravilhosos, ali, dando sopa para um platéia animada de poucos, bem poucos. Alucinados ao som de uma bateria sincopada, mistura de jazz e samba carioca, todos ali vibrávamos numa festa inesperada de um sábado qualquer, em um corriqueiro canto da Lapa.

Sei lá! Sei lá mesmo! Agora só me vêm à mente palavras de uma doida letra do carioquíssimo Melodia, que, como eu, teve sua fase de circular entre Salvador e Rio, entre Graça e Ipanema, juntando mundos separados, vendo-se múltiplo, tomado pelos mistérios de ambas as cidades. A letra fala de um certo passarinho que voa pra longe, mas tem certeza que vai voltar.

Ô passarinho, meu vizinho/ Onde é que vou cantar/ Nessa cidade que me encontro, help/ De help mesmo não tem nada/ Chô... Chô... passarinho viu/ Chô... Chô... passarinho vai voltar.
Sobre mim, borboleta-estrangeira a voar... Se vou voltar? Pouco importa. Só sei que, agora, quando venho ... RIO!




domingo, 9 de novembro de 2008

NOVEMBRO NEGRO OU O FERIADO DE 30 DIAS

"Ó paz infinita, poder fazer elos de ligação numa história fragmentada. África e América e novamente Europa e África. Angola, Jagas, os povos de Benin, de onde veio minha mãe. EU SOU ATLÂNTICA."
(Texto de Beatriz Nascimento, narrado por ela no filme Orí de Raquel Gerner)

"Como negros, se há uma coisa que podemos aprender dos anos 60, é quão infinitamente complexo qualquer movimento de libertação precisa ser. Tendo em vista que devemos lutar não somente contra aquelas forças que nos desumanizam desde fora, mas também contra aqueles valores opressivos que temos sido forçados a introjetar."
(Do ensaio "Learning from the 60´s" de Audre Lord, presente no livro Sister Outsider)

"O dia com o qual começa um novo calendário funciona como um acelerador histórico. No fundo, é o mesmo dia que retorna sempre sob a forma dos dias feriados, que são os dias da reminiscência."
(Do ensaio "Sobre o conceito da história" de Walter Benjamin, no livro Magia e técnica, arte e política)

"Na medida em que havia um intercâmbio entre mercadores e africanos, chefes, mercadores também, havia uma relação escravo-escravo, como também um intercâmbio, uma change também, e essa troca era no nível do soul, da alma do homem escravo. Ele troca com o outro a experiência do sofrer, a experiência da perda da imagem, a experiência do exílio.
(Texto de Beatriz Nascimento, narrado no filme Orí)

"Nós esquecemos que o componente imprescindível para impulsionar o esforço passado em direção ao futuro é a nossa energia no presente, metabolizando um no outro."
(Do ensaio "Learning from the 60´s" de Audre Lord) (Tradução dos fragmentos de Audre feita pela autora deste blog. Cuidado! rs)

"No dia e hora em que escrevo este texto ainda não sei se OBAMA ganhou. Mas não é tanto por isso que estou a escrever. É mais por causa do outro que nunca percebeu que eu existo e ele só pode ser também se deixar de estar assim para podermos ser todos.
(...)
Neste princípio de século, OBAMA conseguiu criar uma energia, um astral de muitas mãos inteiras pelo pensamento de pessoas de todas as partes do mundo, numa corrente parecida com uma constelação de paz sem fronteiras. E isto é um acto de cultura que vai ficar."
(Manuel Rui no artigo Obama e um acto de cultura universal, que pode ser encontrado em http://ricardoriso.blogspot.com)

"Antigamente quilombos, hoje periferia,/ o esquadrão zumbizando as origens africanias/ Somos filhos de uma guerra sagrada/ qualquer periferia, qualquer quebrada é um pedaço da África/ Ideologia quilombola ferve da sul até o nordeste/ USÁfrica, o clã Brasil nordestino/ o som é rap nessa embolada a la Zeca Baleiro/ A explosão do beco/ Conheça o grande Eldorado negro/ O mar guiou, a mata abraçou/ Entre terras e mares o orixá abençoou/ A senzala do passado se perdeu na escuridão/ Com ela a dor do extermínio e da escravidão/ Quiloas, bantos, monjolos, cabinda, mina, Angola, Brasil, Cuba, Ruanda, Haiti, Jamaica e Etiópia/ Conquistas, glórias, derrotas, vitórias de tantas batalhas traçadas, misturando raças com marcas da velha África. Periafricania, resistência, lendas são lendas/ Queimem os emblemas/ Quebrem as algemas/ Zumbi é consciência, o terror da tirania/ O inimigo número 1/ E segue a profecia...”
(Clã nordestinho, faixa "Coração feito de África", álbum A peste negra)


Então, gente! Tive que me segurar para não publicar uma postagem inteira só com falas de irmãs e irmãos de alma. Há momentos em que a história arrebenta e explode dentro de nós uma série de vozes, como se nossas fossem. Nesses momentos, todas são uma só e a nossa própria voz se dilui num eco coletivo. Há momentos que falamos em coro, por isso hoje não estou aqui sozinha. Falo em rede, tal qual as sociedades de onde vieram meus antepassados africanos. Peço licença então para, daqui por diante, falar a minha voz misturada com outras, quase tudo sem aspas, porque neste longo feriado que agora festejamos, re-atualizamos recorrentemente o sentimento de sermos milhares, espalhados e unidos, diferentes e iguais.

Para mim, começou intimista esse nosso novembro negro. Mês do grande feriado conquistado quilombolamente: rememorar Zumbi (nosso único presidente negro até então), rever e inaugurar estratégias de luta, tanto em termos individuais quanto coletivos, tanto no nível existencial quanto no social mais amplo. Esse sim é o feriado pra gente! Verdadeiramente cheio de significado libertador. Um gesto ritual por nós criado, para que jamais esqueçamos que há uma tradição africana no Brasil, perpassada pela resistência, por uma alegria melancólica e também pela dor. Uma rememoração destinada a impulsionar uma história construída sob parâmetros da nossa gente, da nossa marca aqui nessa estranha terra (nossa?).

Este ano, entrei no clima do novembro negro ainda na última semana de outubro, quando chegou a minhas mãos uma pérola negra: o filme Orí, com textos de Beatriz Nascimento. Difícil falar sobre esse filme, dificílimo mesmo, porque suas imagens dizem, antes de tudo, eroticamente, depois sim no intelecto. Ou melhor, fulgurantes reflexões críticas provêm de distintas sensações corpóreas, a partir da visão de um Atlântico múltiplo, que nos liga a todos, africano-diaspóricos. Ao se arrepiar e se deslumbrar com rituais de candomblé. Ao se regozijar com belíssimos corpos negros dançando em bailes soul ou desfilando em concursos de beleza. Ao vibrar com homens e mulheres reverberando palavras de ordem ou fazendo falas emocionadas em encontros, congressos, festivais de cultura e luta política afro-negra. Ao se libertar, quando acompanhamos uma mulher nascer, liberando-se de antigas imagens e se enegrecendo no corpo e na mentalidade. Essa mulher recria, em sua própria trajetória de vida, o sentido pleno de Orí, pois renasce com uma cabeça renovada e acaba por fazer do próprio filme um rito de passagem, um espaço de iniciação.

Como o próprio nome indica, tudo ali é tomado de uma dimensão sagrada. Dentro dessa concepção, a luta de inúmeros militantes insere-se no âmbito da luta do ser humano, acima de tudo, por reconhecimento e por melhores condições de vida. Lamentável que, para muitos brasileiros, a causa anti-racista seja vista como algo destinado à mera criação de guetos ou mesmo como uma disputa para que se consigam privilégios! Nossas perdas e dores são tantas, em tantos e diversos níveis, estendendo-se por séculos, que se torna impossível falar de privilégios. Mas hoje não quero perder tempo com os que não entendem a dimensão humana da luta cotidiana, política, por representação e dignidade do meu povo. Hoje meu grito coletivo é palavra em festa, para comemorar o nosso novembro negro.

Ao vermos as belíssimas imagens de Orí, nos questionamos sobre inúmeras questões. Que Atlântico é esse? Como nosso corpo negro se insere nisso tudo? Como nos colocarmos em luta, inteiras? Há ali muito sofrimento também, porque nossa história é de profundas contradições mesmo. Sobretudo o questionamento do que fazemos com nossos corpos. Muitos dos ativistas e militantes que aparecem lá já se foram, pelos menos, dois deles (Eduardo Oliveira e Oliveira e Hamilton Cardoso), por suicídio. Daí nos perguntamos: como fazer nosso corpo lutar, mas não adoecer? Manter-se em luta cotidiana, mas ter espaço para o prazer: dançar, amar, cantar ou fazer qualquer coisa que dê prazer ao nosso corpo. Isso tudo faz parte de Orí.

Um filme que mostra o quanto devemos a gerações negras que lutaram no passado e o quanto de estratégias de luta temos. É por isso que a simbologia do quilombo está presente o tempo todo nas imagens e nas frestas das palavras narradas por Beatriz. Não é à toa que as últimas palavras do filme, aliás, de um lirismo quilombola único, colocam no centro Zumbi, como figura real e mítica de resistência e libertação: “Para ti, comandante das armas de Palmares, filho, irmão e pai de uma nação. O que nos deste? Uma lenda, uma história ou um destino? Ó rei de Angola Jaga, último guerreiro palmar, eu te vi, Zumbi, nos passos e nas migrações diversas dos teus descendentes, te vi adolescente, sem cabeça e sem rosto, nos livros de história, eu te vejo mulher em busca do meu eu, te verei vagando, ó estrela negra, ó luz que ainda não irrompeu, eu te tenho no meu coração, na minha palma da mão, verde, como palmar. Eu te espero na minha esperança, no tempo que há de vir...”

Pois é, ao ruminar as imagens ritualísticas do filme, iniciou-se o novembro. De cara, a vitória dramática de Lewis Hamilton justamente aqui no Brasil. Na última volta, o afro-inglês consegue ganhar o campeonato de F1. Não que tenha visto a corrida. Longe de mim! Seria demais, já que não vejo sentido algum em ver carros correndo loucos numa pista em forma de serpente com rabo e cabeça unidos. Mas amigos pretos falaram-me exultantes do sentimento de ver Hamilton ganhar nos últimos segundos da disputa. A mim, importa pensar que rede é essa que liga africanos de várias nações distintas em torno de um jovem afro-herói da velocidade, do poderoso mundo da F1. Para além de fronteiras culturais ou nacionais, há uma memória étnico-racial que nos constitui e nos liga. Muita discussão teórica sobre essa ligação tem sido feita, desde quando africanos foram transportados à força para terras americanas, sobretudo durante os dois últimos séculos. Contudo importa aqui a constatação de que ela é fato, na vida de muitos africano-descendentes espalhados por toda a diáspora. Na minha vida, ela é determinante. Na visão dos meus amigos afro-mininos, vidrados na corrida de carros milionários, havia algo ainda mais libertador: Hamilton ganhar logo aqui em nossa terra racista.

Essa vitória no joguinho de autorama (segundo a minha perspectiva, é claro) foi só o prenúncio de outra muito mais significativa que ainda viria. Na verdade, uma conquista que já vinha se anunciando nos últimos meses, num processo eleitoral jamais visto na América poderosa do norte. A maneira como aquele presidenciável afro-diaspórico foi ganhando força, do início do ano pra cá, mudou a perspectiva das eleições de lá, acabando por fazer explodir uma festa política e racial de enormes proporções, dentro e fora daquele país.

Eu aqui, amefricana do sul, recebi, num crescendo, a campanha de OBAMA. No início, não só desconfiada do feliz desfecho, como certa de que aquela vitória pouco me afetaria. Nos momentos finais, já conhecendo mais a biografia do presidenciável e querendo mesmo que aquela família negra ocupasse a Casa Branca, me via, às vezes, vibrando em frente à TV, ao ver a dianteira dele nas pesquisas pré-eleitorais. Agora, a madrugada de 4 para 5 de novembro ultrapassou o imaginável. A excitação de ver cada vez mais perto a possibilidade da vitória, aquela sim, plena de sentido pra mim, fazia meu olhar circular freneticamente entre dois écrãs (o da TV e o do computador), tentando achar notícias saídas do forno e saber logo se os números davam, enfim, a certeza da nossa vitória. Digo nossa, porque, àquela altura, o presidente negro de lá era também meu de alguma forma.

Final da noite, McCain discursa assumindo a própria derrota. A platéia vaiava Obama e eu vaiava aqueles idiotas comprometidos com os tranqüilos mesmos de tudo, com a continuidade da barbárie. Pelo que me lembro, entre 1:30 e 2:00 da manhã, OBAMA inicia o discurso da vitória. Eu, do lado de cá, mesmo sem ser vista por ninguém, chorava silenciosamente lembrando outros quilombolas, de lá, de cá e de outras partes, que passaram pelo mundo brincando de ser deuses, espalhando, muitas vezes através da própria morte, a possibilidade de transformações reais na vida de negro-africanos da África e de fora daquele continente. Chorava por estranhamente me ver nas três lindas mulheres pretas da família de OBAMA. Chorava baixinho, quase que um choro escondido de mim mesma.

Embora não acredite em mudanças radicais na política dos EUA, principalmente em termos de política externa, e saiba o quanto de espetacularização há nessa imagem pública multicultural de OBAMA; sem dúvida, a carga simbólica presente no fato de um afro-diaspórico ocupar o cargo mais importante da potência mundial de agora é indubitável. Entre nós, amefricanos do sul, a atitude quilombola ganha nova força. Nossa contenda continua! Que venha uma mulher ou homem africano-descendente para ocupar o mesmo cargo aqui. Apesar de certa tradição brasileira construir-se a partir de uma falsa idéia de harmonia racial, propagada, principalmente, por nossa mídia televisiva, o presidente negro de lá se torna, alegoricamente, uma espécie de prenúncio a um novo Zumbi, já que, o poder mítico do líder palmar acaba por se dinamizar em um duplo caminho: constrói um passado liberador e, por outro lado, cria um destino quilombola que se expande em direção a um futuro.

Se o espírito deste texto é uma rede de vozes afros transmigradas, termino como iniciei, em coro. Atormentada como sou, fiquei a me perguntar por que não me permiti chorar alto e esbravejar a emoção que sentia naquela madrugada sagrada. Lembro-me bem que, depois do discurso da vitória, circulei pela internet, assistindo a antigos discursos do democrata, lendo notícias sobre a campanha eleitoral e, nas brechas, respondendo a emails atrasados, por isso só me dei conta de que o tempo tinha passado, quando, sem querer, olhei o relógio do computador marcando 5:03 da manhã. Virei então para a janela: a posição do sol anunciava o dia. Literalmente, OBAMA e sua linda família de afro-mininas como eu foram a minha madrugada. Ao ler, dois dias depois, o parágrafo do escritor angolano Manuel Rui, com que termino agora este texto, desatei a chorar alto, soluçando. Foi quando me lembrei de algo que há muito tinha esquecido: existe um soluçar incontrolável de alegria, uma alegria melancólica, é verdade, já que parte da lembrança de inumeráveis violências acumuladas, mas , ainda assim, só pode ser chamada de alegria.

“Não importa que este Messias traga milagres. Importa é o milagre cultural de pôr uma boa parte do mundo inteiro a olhar para ele como um salvador e perder uma noite só a olhar para um televisor como se OBAMA fosse uma madrugada.”


(1ª foto - Beatriz Nascimento; 2ª foto - Obama e a sua avó paterna; 3ª foto - família de Michelle e Obama)


terça-feira, 4 de novembro de 2008

CORPO QUE SONHO (SENTIDOS NO CAOS)

O que os sonhos nos dizem? A mim, eles dizem no corpo. Levanto bem ou mal humorada conforme os sonhos que tenho. Ontem mesmo acordei rindo (adoro quando isso acontece, embora seja raro). Sonhei que voava

Antes de voar, estava num avião que sobrevoava um oceano à noite, bem próximo à água, com muitos outros aviões em volta fazendo praticamente as mesmas manobras sobre o mar. De repente, via pela janela que os aviões embicavam para cima e, num átimo, se distanciavam de perto de nós. Não demorou muito para a aeronave em que estava fazer o mesmo. Assim que subiu, uma comissária distribuía varinhas compridas para os passageiros que quisessem. Peguei uma e saí do avião. Daí se deu início uma das melhores sensações que meu corpo já sentiu. Eu voei, mas voei muito mesmo. Meu corpo flutuava em velocidade, aproveitando feliz a liberdade dos ares e a escuridão acolhedora da imensidão, segurando a tal varinha que, do nada, se acendeu em fogos de artifícios. Todos os passageiros que aceitaram o mágico objeto também voavam desimpedidos, com seus ramos de fogo e brilho na mão.

Ao aterrissarmos tinha uma grande multidão, em corredor, nos aplaudindo e gritando muito. Se antes senti liberdade no meu corpo, quando cheguei suavemente no solo, experimentei uma força profunda e uma alegria gorda. Meu corpo todo só respondia ao prazer e sentia nele uma potência desconhecida, como se tudo e todos pudesse defender naquele momento, tanto que acabei defendendo minha irmã de um querido Leli (encantado), que tinha voltado brincalhão para roubar-lhe os óculos. Acabei o sonho dando um tapa e um pito no meu avozinho! Non-sense. Sentidos nesse caos são pegadas de um mundo criado por mim, mas absurdamente estrangeiro. Estranho-eiro...

Agora, fragmentos de imagens também falam: mar, ar, fogo, vivacidade, plenitude de potência! Sonhei um artificioso sonho em forma de luz, com a vida vivendo quente em meu corpo, e acordei gargalhando! Minha carne inteira queria continuar voando, vivendo livre pra sempre...

Série OS NADAS DE LUGAR NENHUM (Poster Good Morning Lord de Ernest E. Varner)

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

LANÇAMENTO DE "PELÉ - ESTRELA NEGRA EM CAMPOS VERDES"

Ainda não li o livro, mas sei que ele guarda um diferencial em relação a outras biografias do jogador, já que há uma sutil abordagem da questão racial, através de uma análise de algumas contradições geradas pelo racismo na trajetória biográfica desse mito negro brasileiro.
Parabéns, Angélica, por mais essa conquista!
SOULSISTA

Os dribles, as jogadas geniais, o enorme talento com a bola e os gols inesquecíveis fizeram de Pelé um mito. O menino pobre que nasceu Edson Arantes do Nascimento e era carinhosamente chamado de Dico na cidade de Três Corações, em Minas Gerais, alçou vôos inimagináveis para um garoto negro da época. Aqui, podemos acompanhar uma história de glórias, de alguém que brilhou intensamente como estrela negra em campos verdes, mas também uma história humana, de uma pessoa como todas as outras, com os altos e baixos que a vida impõe. Este livro narra o seu percurso. Uma trajetória marcada pela fama e o sucesso, que o levaram a ser cultuado como figura máxima do futebol - ou, para ser preciso, como verdadeiro sinônimo do esporte - em todos os quadrantes do planeta. Isto durante décadas, sem que sua retirada dos gramados, há mais de 30 anos, tenha afetado a popularidade de Pelé nem diminuído sua aura de eterno campeão. Pelé enfrentou dificuldades de ordem econômica, familiar, afetiva. Teve problemas com os filhos, sofreu baques comerciais, viveu o fim de dois casamentos e alguns tórridos romances públicos. Saiu-se, como todo mundo, às vezes melhor, às vezes pior. Na média, uma trajetória digna e bonita, com alguns tropeços e muitas grandezas. Agora, às vésperas de completar 68 anos, Pelé ressurge como personagem múltiplo e complexo, idolatrado por milhões de admiradores ao redor do mundo e profundamente brasileiro - sempre fiel ao menino negro que, ainda conhecido como Dico, saiu com a familia de Três Corações para conquistar o mundo. É o que este livro relata, com graça e leveza, a partir de uma vasta e rigorosa pesquisa documental.


A editora Garamond e a Fundação Biblioteca Nacional convidam para o lançamento do livro "Pelé - estrela negra em campos verdes", de Angélica Basthi, no próximo dia 12 de novembro, dentro da coleção Personalidades Negras.


Dia: 12 de novembro


Horário: a partir das 18h


Local: Livraria Garamond, no IFCS


Largo do São Francisco, nº 1


Centro - Rio de Janeiro