sábado, 11 de abril de 2009

MINHAS DUAS ANCESTRAIS VIVAS (declaração de amor)

Este texto é antes de qualquer coisa uma declaração de amor. Leli, meu avô, já antigo conhecido dos que me lêem desde o início (setembro de 2008), me deu muito mais presentes do que os apresentados no texto inaugural dessa coisa aqui. Dois dos mais preciosos são duas irmãs dele, minhas tias-avós Zelina e Bubu.

Antes de ontem, sexta-feira santa, dia do almoço sagrado na casa delas desde 2007, voltei da Liberdade me prometendo escrever aqui um texto para homenageá-las. Como acabou não dando pra fazer no dia, a idéia tinha amansado em mim, mas hoje, folheando um esporádico diário que escrevo, achei um texto escrito na primeira semana-santa soteropolitana da minha vida.

Em 13/04/2007, refleti, sob os auspícios de Baco (porque depois de intensa vivência com o mundo delas, só um vinho pra me ajudar a desvelar aquilo tudo dentro de mim), sobre o que representava a vitalidade daquelas arqui-mulheres na minha vida. A vida delas, sem dúvida perto do fim, proporciona que eu ligue as pontas todas dos tempos que me constituem: desde antes de eu nascer até depois de eu desaparecer.

Tais quais os mitológicos personagens de Guimarães Rosa, minhas lindas tias vivinhas da silva guardam uma alegria de viver, uma lucidez e uma fé, no mais profundo sentido que essa palavra possa ter, que é de cansar qualquer jovem que se sente ao lado delas para escutar suas saborosas histórias, exaustivamente repetidas, né? Normal... Mas sempre, no meio da repetição de histórias d´antes, vem um personagem novo que eu não conhecia ou uma faceta nova de personagens já conhecidos.

Nessa sexta mesmo, descobri que meu avô já trabalhou voando. Bem novinho, era radiotelegrafista de bordo e orientava o piloto bem ao lado dele, ali da cabine. Isso ele nunca tinha me contado. Lelinho me contava heróicas histórias do trabalho dele em terra, explicando como orientava, a partir dos tipos de ventos e de outros fenômenos metereológicos, os pilotos a saírem de enrascadas que poderiam levar a sérios acidentes. Ele de fato entendia os mistérios dos aviões e sua voz traduzia um verdadeiro amor pela aviação. Pois foi a pedido de sua mãe, Dedé, que meu avôzinho parou de voar, ainda bem jovem. Nossa... uma mente que ama imaginar o não acontecido como a minha, já me levou a pensar quão mais audacioso seria meu avô se tivesse continuado a furar céus, voando nessas enormes aeronaves por aí.

Sem as inspiradas versões de minhas tias, jamais tomaria conhecimento disso e de outras histórias da minha família. Elas são o contraponto do meu avô, porque, se ele dourava a pílula e mostrava um mundo só de encantamento, elas me contam as mesmas passagens por outras perspectivas e vão logo dizendo. "Seu avô, ah, pra ele tudo era bonito e perfeito, Fafá, mas papai não era mole não... mulherengo que só ele". "Dedé, nossa mãe, era ótima! Mas não queria que suas filhas se casassem. Não é porque ela tinha sido infeliz no casamento que nós seríamos, né? Não entra nessa não, viu, Fafá, se case!" Por esse senso de realidade, minha visão delas mudou radicalmente. Antes de vir para Salvador e ficar mais próxima do mundo ultra-contemporâneo delas, minhas tias se resumiam a ser as carolas da família. Aquelas mulheres que se refugiaram na fé católica por medo da vida, dos encantos sensuais ou eróticos que nos fazem queimar, para o bem e para o mal.

Ledo engano meu! A fé dá não só sentido, como lucidez e erotismo a suas vidas. Quando falam em homens do passado ou do presente mesmo, os olhos delas vibram e eu vibro por dentro, por ver que estão vivas e que sentem prazer, um amor pela vida que as levam a não querer ir embora deste mundo. Ah, esqueci de dizer, Tia Bubu tem 94 anos (é a mais velha de todos os filhos de Dédé e Phillipe) e Tia Zelina completará 91 agora no proximo 27, apenas 3 dias após o meu aniversário (só para avisar aos leitores daqui, ta?). Vale contar, em separado, fragmentos da história de cada uma, porque é da riqueza da trajetória de minhas velhas tias pretas que eu bebo água benta e purifico meu corpo...



Tia Zelina foi a mulher desbravadora da família. Uma perspicaz aluna que fez parte do grupo das dez melhores notas de uma importante escola normal de Salvador. Os estudos dela foram custeados pelo meu avô, que na época, já trabalhava, e alugou uma casa na capital, pois seria pouco prática a vinda diária da Ilha (de Itaparica) pra cá. Tia Zelina foi professora num tempo em que era necessário ir a lugares pouco habitados do norte e nordeste do país. Embrenhou-se por terras indígenas da Amazônia. Num desses lugares, ela conta, decidiu voltar para Itaparica 6 meses depois, pois sofria com saudades da sua terra e família. Alunos-garimpeiros ofereceram fortuna em ouro e diamante, para que ela não fosse embora. Sempre que acaba de contar essa história, ela diz: "Nós poderíamos ser milionárias hoje, Fafá! Mas eu não aceitei." No meio de suas histórias de viagem, ela demonstra certo arrependimento por não ter tido coragem de continuar viajando, descobrindo mundos diferentes dos seus. Suas histórias são uma maneira de se rever, já no fim da vida, refletindo sobre o que sabe que não poderá mais fazer.

Tia Zelina gosta tanto da vida que o que mais a angustia, mesmo com toda fé que tem no Santíssimo, é a proximidade da morte. Isso ultimamente a tem deixado sem sono, mas perder a lucidez, ela não perde não. Agora, essa tristeza toda vai embora, quando a casa se enche de gente e a festa começa: são vizinhos entrando e saindo, padre que reza para Nossa Senhora lá, benze a casa e depois todos da comitiva religiosa se fartam com delicioso café da manhã, é gente passando para vender peixe, beiju, ex-alunas que ligam.

Aniversário naquela casa tem que ser comemorado com bolo bonito, todo confeitado e em forma de coração. Nos seus 90 anos, a casa se encheu de ex-alunas-afilhadas do Baiacu (uma região da Ilha de Itaparica). Hoje as antigas menininhas são avós ou bisavós que ainda guardam profundo amor e respeito por aquela mulher preta e distinta que lhes ensinou as primeiras letras. A foto a seguir, mostrandoTia Zelina rodeada por suas eternas alunas, me leva a entender que minha função hoje, como professora, faz parte de uma linhagem de resistência que se estende, pelo menos, desde a década de 30 do século XX.



Tia Bubu é outra coisa, complementa o lado ansioso de Tia Zelina, mas ela é melhor que todo mundo. Pra mim, ela representa tudo o que eu jamais poderia ser: desde o desprendimento para cuidar dos outros, a bondade extrema até a virgindade. É isso mesmo, gente! Minha tia sairá deste mundo talvez sem ter sequer se aproximado da boca de um homem (nem falo de mulher, porque isso ela jamais consideraria). Mas, entendam, o moralismo passa longe dessa mulher criada para ficar em casa, para ser aquela que cuida dos outros porque é assim que tem que ser. Na última sexta-feira, emocionada fiquei, quando soube que foi ela quem cuidou do meu bisavô Phillipe quando ele já se encontrava nas últimas. Na hora de dar banho, ele ficava muito incomodado e dizia: "Quem tinha que fazer isso era meu filho homem". Ela rapidamente respondia: "Mas ele não está aqui. Mora longe. E de mais a mais eu sou sua filha. Deixa de besteira!!!!"

Seu nome, Áurea, eu não sei por quem foi dado, mas com certeza foi alguém com ares de feiticeiro para saber que a personalidade dessa mulher seria de ouro mesmo. Ao contrário de sua irmã docemente ranzinza, Buba gosta de tudo que dá prazer (doces, comida boa e, pasmem, piadinhas de sacanagem, depois das quais vemos ecoar sua forte gargalhada pela casa a fora). Mandou uma sacanagenzinha, ela capta na hora, mesmo com ouvidos que não ajudam mais tanto assim. Quem chegar com bala, ela vai logo aceitando, às vezes escondida da irmã, sempre preocupada com o nível de açúcar no sangue, com a alteração de pressão. Tia Bubu quer mais é viver sem reclamar e aproveitar feliz o tempo que resta por aqui. Por isso, quando Tia Zelina começa suas reclamações sem fim, ela vai logo cortando: "Vamos parar com isso, minha gente! Podemos viver sem reclamar. O sofrimento fica pra trás." Tia Zelina geralmente obedece, mesmo que a contragosto.

A minha alta gargalhada é de Buba com certeza. O meu "gente", arremedado por tantos amigos, é dela com certeza, essas memórias atávicas que se cravam na gente, sabe? Mesmo tendo crescido longe delas, nossa linguagem tem muito em comum. Ah, já ia me esquecendo, mas meu nariz também é de Buba, assim como o de minha mãe, do meu irmão Felipe (esse com outra grafia), de Morena e de João. Todos nós ligados assim... desde a mulher de ouro! Pra mim, é um conforto saber que eu me estendo para antes do meu corpo se constituir como tal em duas vívidas mulheres negras.



Para terminar, parafraseio toscamente - como é bom poder ser tosca aqui, meu deus!- Clarice Lispector e Elisa Lucinda, usando a 2a. pessoa do plural, em sinal de respeito por aquelas que vieram muito antes de mim e continuam por aqui, me dando o privilégio de conhecer grande parte da matéria de que sou feita.

Tia Zelina e Tia Bubu, eu vos amo! Diariamente morro por vosso perfume, aquela lavanda de depois do banho das 18:00, aquele talco perfumado à velhice boa, das mulheres tomadas banho de todas as nossas famílias pretas por aí...



Série SOULSISTA

19 comentários:

Lina disse...

Fafá
Que texto maravilhoso!
Que mulheres maravilhosas somos!
Salve as mulheres pretas!
Salve as professoras pretas!
Salve as mulheres pretas entalcadas após o banho!
Salve Tia Bubu virgem!
Salve a professora Zelina!
Axé!

O Brechó disse...

Ei Fabiana,

É admiravel o respeito que você tem por essas mulheres tão vividas e seu alcançe de mundo através delas.
Tem tanta áfrica na sua fala, essa admiração pelas suas tias/avós que é pautado em muito respeito pelas suas vidas/histórias que só tem a nos ensinar.
Parabéns pra você por ter "ancestrais" vivas!.

abraços.

Fabina Campos Santos

natao08 disse...

Oi Fafis,mesmo que rapido e a muito tempo tive o prazer de conhecer suas Tias,e me lembro que comentaram algo sobre mim que não me vem na memória agora.rsrs Fico feliz que tenha ido morar em Salvador,coisas que vc ja queria aha muito tempo atras.rs Revendo suas estórias suas origens,muito legal mesmo.Sorte de quem consegue isso.Aproveite o máximo.Texto lindo,e ja disse vou querer meu Best Seller autografado.rsrs Bjão PAZ

WebNeguinha disse...

Fabiana,
tocante!

Quisera todos que as têm tivesse a sua compreensão,
os capítulos de nossa Nova História ficariam ainda mais lindos.

Bjs

Gaoners disse...

Essa é minha querida irmã, que narra belas histórias sobre nossas origens. Se meu avô Lele estivesse vivo estaria babanndo na internet, pois do jeito que gostava de tecnologia ja estaria também conetado a nós aqui na rede. Falo isso porque ele adorava o intelecto da Fafá. Me lembro até hj a apresentação do mestrado, com ele chorando no final. Nunca vou esquecer aquele momento, aquele rosto que expressava um imensa felicidade e orgulho. Estou falando aqui falando do meu avô porque essas mulheres são tão importantes em nossas vidas como ele foi. Poxa, a verdade é que ja chorei muito lendo minhas tias aqui na blog da Fabiana. E decidi. Custe o que custar vou a Bahia em 2010.
Como o seu irmão te ama e te admira Fafá. Obrigado por todos os ensinamentos. Obrigado pela irmã que és. Sou extremamente grato. Vida longa para essa preta de verdade. E que verdade.

:: Soul Sista :: disse...

Queridos, hoje é um dia feliz, porque o meu irmãozinho, por sinal o mais mimado do RJ, deu o ar da graça dele por aqui pela primeira vez!!! ÊÊÊÊÊÊEÊÊÊÊiiiaaaaaaaaaaaaa, Felipão!!!!!!! Venha mesmo reencontrar nossas tias. Venha logo, porque, já viu, né? rsrsrs Venha ainda em 2009, não em 2010, ta? E traga minha afilhada e joão, ta? Espero vocês....

Agradeço a todos que aqui têm se colocado, por compartilhar comigo a alegria de poder conviver com essas arqui-mulheres.

Um grande beijo em tod@s!!!!!

Anônimo disse...

Hey Babi,

Adorei o texto e a oportunidade de conhecer um pouco mais sobre a estoria da sua familia. Como sempre escrevendo textos interessantes e enriquecedores. Como disse "mamita" Viva as mulheres negras!!! You go sistah!!!!

Grande beijo,
Da sempre amiga,
Thatiana.

:: Soul Sista :: disse...

Felipe, esqueci de contar esta pérola. Nossas tias colocaram as fotos de seus filhos num altar que elas têm na sala. Toda vez que tia Bubu passa pelas fotos, conversa com eles: "Vocês estão vendo a vovó!!! Estão vendo...." É fofo e cômico ao mesmo tempo!!!! Elas deram tantos vivas quando viram as fotos de João, que ele está abençoado para todo o sempre com certeza! Grade beijo da irmã e comadre que também muito te ama!

:: Soul Sista :: disse...

Thatiiiiiiii, que saudades! Amei você passar por aqui. Amei! Desconfiava se você passava ou não por aqui de vez em quando. Outro dia falei com sua mãe para pedir o telefone de Regina. Vamos nos falar!! Minha vida deu uma guinada de 360o graus. Lembra das aulas de desenho geométrico do nosso digníssimo ex-diretor lá do Humaitá? O que chamava todo mundo de "Chiquinha"!!!! rsrsrsrsrsrsrs Então, foi com ele que aprendi o valor do ângulo de 360o. rsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrs Acordei boba hoje, ein Thati!

Grande beijo

Cintia disse...

Oi Fabiana!

Pq toda vez que venho aqui nesse seu cantinho eu fico emocionada? será que vc pode por favor parar de fazer isso comigo!

Novamente eu tenho um enorme orgulho de falar que fui sua aluna, pois nestes textos em que a sua alma fica totalmente explícita nas palavras é que confirmo mais uma vez que não tive uma simples professora de Português mas sim uma professora de VIDA.

Lindas, Maravilhosas e Fofíssimas essas suas Negras Raízes, com certeza o mesmo orgulho e admiração que vc tem delas, Elas tem de vc!

Beijos enormes e não esqueça de quando vier ao Rio, me avisar, para marcarmos algo!!

:: Soul Sista :: disse...

Cíntia, querida!!!! Que saudadessssss!!!!! É o seguinte: vamos ficar ambas as duas rasgando seda uma da outra, porque sempre te falei, desde a época que convivemos juntas na FO, que você é daquelas alunas inesquecíveis e, das vezes que nos encontramos por aí, vi que você se transformou também numa grande mulher, o que vc, no fundo, já era na adolescência. Eu, assim também como as suas raízes daí, tenho certeza, nos orgulhamos muito de vc, viu? Pode deixar, quando estiver no RJ, eu falo, pra gente marcar um encontro e rir a valer, ta?

Beijinhos!!!!!!

Márcio Macedo disse...

Belo texto Fabiana!

Beijos,

Kibe.

:: Soul Sista :: disse...

Kibe, não é pq é primavera aí nesse Central Park horroroso e suas "final weeks" chegaram que vou desculpar a ausência em "newyorkibe" não, viu? Daqui a pouco, deixa só passar uns diazinhos, vou lá reclamar.... O que é isso? Coloca um montão de links pra gente clicar e some? Ai ai... Só daqui a um mês talvez, pq pelo que vi lá ainda pode ser mais. Isso né legal não, minha gente! rsrsrsrsrs

Beijos

Kibe disse...

Querida Fabiana,

Creia, realmente preciso de umas férias do NewYorkibe! Só estava tendo idéias e mais idéias de temas para posts e nada de insights relativos aos temas dos meus papers! Agora, continuo tendo idéias, mas diferente de antes, só anoto no meu caderninho e foco minha atenção na porra dos papers... Em maio vou ter muito assunto para escrever!

Hoje mesmo li um conto de Arna Bontemps que quase me fez cair em prantos no meio da biblioteca da NYU. É a história de um casal de velhinhos negros que decidem cometer suícidio juntos num dia quente de verão. Vestem-se como se fossem para um grande evento ou a igreja e... O lance é que você só descobre isso quase no final do conto... Procura por aí, chama "A Summer Tragedy" e está na coletânea organizada pelo Langston Hughes "The Best Short Stories by Black Writers: 1899-1967"

Por fim, mesmo não escrevendo no meu, promovo o seu! *rs*

Beijos carinhosos ao som da trilha sonora de Love Jones em mais uma madrugada gasta na biblioteca,

Kibe.

:: Soul Sista :: disse...

Caro Márcio Macedo (kibe), é o seguinte, vou respeitar (um pouco) o seu momento, mas se demorar demais vou reclamar sim, viu? Adoro reclamar!!!!!! rsrsrsrsrsrs Bom trabalho aí pra vc! Tb estou aqui na labuta.

Adorei o enredo do conto (que vc contou todo, né?). Não achei o livro organizado por Hughes disponível para o Brasil, mas achei o conto em outra coletânea, Black Voices: an Anthology of African-American Literature de Richard Wright. Vou ler sim... esse e outros de interessantes autores que estão lá. Valeu mesmo!

Beijos gordinhos pra vc!

Ana Claudia disse...

Que bonito, Fabiana

Angelica Basthi disse...

Q lindas, q história, tocante. Q força, meu Deus. Viva a vida!! bjs

Marcia Moraes disse...

Viva nossas mulheres e memorias negras! :)
Adoroooooooooooo :D

:: Soul Sista :: disse...

Também adoro! É um prazer ter você aqui. Fiquei emocionada e mais afinada com os meus objetivos de vida, depois que li o seu texto sobre sua avó Cecília. Forte abraço