sábado, 22 de novembro de 2008

Quando venho Rio


Antes, morando aqui durante toda a minha vida, tinha muita vontade de sumir. Encanada com a cidade onde nasci, desejava desde cedo novos mundos. Sair daqui, conhecer o estranho, me deter nos estranhos de mim. Por isso, os estrangeiros são meu forte. Muitas vezes, inclusive, foram eles, em trânsito, meu porto seguro. Que engraçado!

Já andei e desandei pela minha cidade. Já desamei e amei minha cidade (exatamente nessa ordem) enquanto aqui morava. Tenho amado e desamado estrangeiros pela minha vida à fora. Aliás, busco a fonte disso e não encontro nunca, porque talvez não seja para encontrar mesmo. Só lembro que passei a refletir mais sobre esse tipo de olhar, quando li O estrangeiro de Camus, aos 16 anos, incentivada pelo meu professor de filosofia da época. Foi a primeira sensação intensa ao ler um romance, pois tive que lidar com ética em profundidade. Abismada e sentindo-me estrangeira de mim, solidarizei-me com o assassino-protagonista. Como eu, tão justa, poderia compreender e defender intimamente um homem que tira a vida de outro ser humano? Hoje a questão parece pueril, mas, na época, foi uma comoção erótica ler o absurdo existencialista do argelino. Meu corpo adoeceu e eu só consegui sarar, quando cheguei ao final da história. Foi a minha primeira experiência radical com o que está fora (extra), em tensão e profunda identificação com o que está em mim, no meu interior. Talvez, naquele momento tenha me identificado com uma maneira de olhar o mundo como se nele não estivesse: estrangeira. Essa é a condição que me coloco quase sempre em tudo. Tá vendo! Mesmo fingindo que não estou procurando raízes para meus sentimentos, acabo criando respostas. Mas, de fato, línguas, corpos e hábitos culturais estranhos me atraem muito! Talvez por isso também, voltar para o Rio a partir de uma nova condição, estrangeira, tem me agradado muito nos últimos tempos.

Estar em outra cidade há um ano e oito meses me faz olhar para minha de maneira diferente. Não exatamente há em mim um desejo de voltar agora. Não sei se já é hora de voltar pra casa! Não sei mesmo... Só sei que vir aqui com o olhar de fora é outro encantamento... Outra levada mesmo, olhar para uma cidade tão simultaneamente familiar e estranha. Passar, em trânsito, pelo Rio me faz ver o novo onde, antes, só via o normal, o de sempre.

Eu saí do meu lugar e a cidade saiu do seu constumeiro lugar em mim também. Nossa! Quanta filosofia barata de deslocamento! O fato é que, tal qual uma criança, vejo tudo como se fosse uma grande novidade. Como Tim Maia Racional, quanto venho ao Rio fico numa relax, numa tranqüila, numa boa! A sensação é a de que estou mais livre mesmo, para rever os vãos e desvãos da minha cidade.

Óbvio que muita coisa me entristece, ainda até mais do que quando aqui vivia, como a paisagem mudada da Glória, bairro onde morei nos últimos cinco anos de RJ. Mudada pra pior, com crianças esquálidas correndo e lutando todas juntas e misturadas por mais uma pedrinha de crack, outra vagando só, em movimentos rapidíssimos, como se tivesse acabado de fumar mais uma pedra. Doloroso, sombrio, mais do que triste ver na esquina da minha antiga rua meninas e meninos brincando, elétricos, todos sob o efeito de um vício-mãe, vício-pai, vício-irmão, vício-avô, vício-tia...

Mas, por outro lado, toda roda de samba já conhecida, mesmo com as pessoas de sempre, é nova pra mim. Às vezes, vejo amigos meio que entediados olhando pra mim espantados, sem entender a razão de tamanha alegria. Outro dia, um amigo me olhou palerma, até porque nem sabia que eu estava na cidade, a rodopiar no salão (será que dá pra chamar a parte coberta do Beco do Rato de salão?) com um ilustre desconhecido. Corpos suados e apertados, tomava banho de cerveja feliz, observando o amigo de longa data que me acompanhava e tocava, à moda dele, um pandeiro atravessado, em meio aos músicos de verdade! Ai, ai! Se fosse antes, gritaria: "A. saia já daí! Você ta atrapalhando tudo!!!!" Mas aquele dia não. Nem tava aí! Nem tava ali! Estrangeira, via estranhamente de fora toda aquela confusão a minha volta. E mais... Gostava verdadeiramente daquele caos!

Nossa, como é bom chegar no RJ e reencontrar o meu sotaque! Se quero mesmo experimentar minha antiga dicção novamente, entro num táxi e desato a puxar papo com o taxista. Daí vem, caudaloso, o ritmo da linguagem da minha terra. Como falam os taxistas? Sempre com mil histórias pra contar e mil e um caminhos pra fugir de engarrafamentos que empatam suas vidas de correria. Falar novo e antigo, jeito de corpo meu e nunca visto. Eu rio no Rio, me amarro! Praia, Posto 9, é mistério da raça! "Lá no sul eu freqüento Ipanema, sistema, cachaça pra se beber". Melodia disse tudo! Muitas emoções boas ali passadas voltam assim que piso naquela areia quente ou quando entro naquela água geladíssima... Ali não sou estrangeira nada! To em casa, meu quintal mesmo!

Agora, pérola da mais negra é quando me deparo com o novo para mim, estrangeira, e para amigos já cansados dos mesmos da cidade. A expressão de encanto e novidade é coletiva. Tive umas três vezes essa sorte! A última foi maravilhosa! Pela primeira vez, um grupo de homens pretos tocaram no último sábado, em pleno Beco do Rato, um soul do bom. Músicos maravilhosos, ali, dando sopa para um platéia animada de poucos, bem poucos. Alucinados ao som de uma bateria sincopada, mistura de jazz e samba carioca, todos ali vibrávamos numa festa inesperada de um sábado qualquer, em um corriqueiro canto da Lapa.

Sei lá! Sei lá mesmo! Agora só me vêm à mente palavras de uma doida letra do carioquíssimo Melodia, que, como eu, teve sua fase de circular entre Salvador e Rio, entre Graça e Ipanema, juntando mundos separados, vendo-se múltiplo, tomado pelos mistérios de ambas as cidades. A letra fala de um certo passarinho que voa pra longe, mas tem certeza que vai voltar.

Ô passarinho, meu vizinho/ Onde é que vou cantar/ Nessa cidade que me encontro, help/ De help mesmo não tem nada/ Chô... Chô... passarinho viu/ Chô... Chô... passarinho vai voltar.
Sobre mim, borboleta-estrangeira a voar... Se vou voltar? Pouco importa. Só sei que, agora, quando venho ... RIO!




11 comentários:

Katia Costa-Santos disse...

Fabiana,
Faço minhas as suas palavras!
A condiçao de passante nos induz a leveza e ao prazer quase promiscuo -- acho que é pra nao perder isso que nao me vejo morando em SSA, minha segunda cidade.
Neste ultimos 8 anos foi sempre assim. Mesmo agora, qdo me questiono o continente em geral, eu sempre digo ao Rio, qdo ando pela cidade, "nada pessoal, num tem nada a ver com vc, alias vc é o unico ganho so far".

Bjs e qdo voltar a terrinha, me chame pro beco.

Katia

Katia Costa-Santos disse...

Fabi, voltei pra te dizer, de novo, o quão verdadeiras sao as suas palavras, com um exemplo prático.
Estou desde segunda passada procurando alguem que queira ir ver Bebeto na lona de Realengo, e ninguem quer ir, nem minha amiga que mora ao lado da lona, dizem que esse meu desejo é arroubo de "carioca gringa". Uns nao querem ir pelo lugar [chances de ver a dança deliciosa dos locais, a dinamica é outra] e outro pq é o Bebeto.
Muito triste...Xá pra próxima...

:: Soul Sista :: disse...

Po, Katia, horrível mesmo! Quem ousa não querer ver Bebeto? Aqui tenho escutado muito ele e sonhado que deslizo em par pelo salão com seus maravilhosos samba-rock, swing, sei lá!Logo eu, que piso no pé de quem dança comigo (rsrsrs). Se tivesse aí, iria com certeza. Uma pena constatar que o cotidiano torna o nosso olhar menos perceptivo, menos encantado mesmo, né?
Uma dica: Claudia Miranda ama Bebeto. Quem sabe ela não se dispõe a ir com você?

Beijos, até a volta...

Katia Costa-Santos disse...

Agora ja era.

Encontrei nossa amiga Simone online e comentei com ela, que ninguem queria ir, nem os locais, por ser bebeto, e ela me saiu com essa perola: "quem é essa gente? suburbano que tem memoria, tem bebeto na historia" , :)
Ela é mesmo unica...
bjs

:: Soul Sista :: disse...

Ela é totalmente única, graças aos deuses! Cada lema que sai da cartola. Maravilhoso esse que temos que ter na ponta da língua... Fala sério!!!!!!Meu, já gravei!!!!

Wilson disse...

Fabi... Fabi... tô aqui só pra dizer que, mesmo sem deslocamento, também RIO... e no ônibus (engarrafado na Av. Brasil), com o texto impresso, ficou melhor ainda... rá rá rá!!!

mas diz aí, Kátia, que dia é esse Bebeto... hein???

:: Soul Sista :: disse...

Querido Wilson, você sempre sempre RIU! E isso é maravilhoso!!!! Com certeza, você é um dos meus amigos que vê sempre cada canto do RIO com olhos novos. Aliás, vc foi um dos que me ensinou a amar a descontração malandra de nossa terra. Mas me diga... e esse trem do samba? Sai ou não sai hoje? Que saudades... 2º ano sem meu trenzinho e Oswaldo Cruz. Se for lá, beba e sambe por mim. Aqui, vou à Praça Municipal mesmo! Fazer o quê, né? (rsrsrsrsrsrsrs) Outros sambas... Vc tb conhece o gingado das ladeiras daqui, né? Muita pimenta, muita mesmo.
Ainda antes do final do ano, marquemos sem falta uma cerveja, ou melhor, um espumante "Brut" pra abrir com os fluidos de Baco o próximo ano...
Grande beijo

:: Soul Sista :: disse...

Voltei porque não resisti. Wilson, que foto linda é essa? Ta querendo conquistar quem com esses óculos e esse fundo maravilhoso????? É alguém daí ou de fora? Meu caro, vc ta rindo à toa, ein!!!! (rsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrs)
Bjs

nadja disse...

Quem nasce na cidade maravilhosa, maravilhosa é rsrsrssrsrsrsr!!
Adorei as percepções, TODAS e ainda mais a leveza disso tudo. Impermanence rules baby and that's the best, I think.

Katia Costa-Santos disse...

Ih, Wilson, ja rolou ha um tempao...
Mesmo assim, bom saber que alguem mais curte o pai da Jessica...

Ana Claudia disse...

Oi, Fabi, acabei de escrever um textinho do qual havia gostado tanto aqui no seu espaço de comentários.Era sobre a gente se sentir estrangeiro por dentro...Ele se perdeu, apagou, agora está muito além, por aí, na internet. Chatice.

Cheguei por aqui pela Simone. Parabéns pelo seu blog! Quando tiver um tempo,vai lá no meu também.

Saudade...
Beijinho,
Ana Claudia (da Fundação ao cp2, só uma referência pra você lembrar)

www.annacronica.blogspot.com

Meu e-mail:
anacabram@gmail.com